O assassinato de Manoel Fiel Filho foi a gota d’água para que o presidente Ernesto Geisel exonerasse do comando do 2º Exército o general Ednardo D’Ávila Mello e tirasse da chefia do Centro de Informações do Exército (CIE) o general Confúcio Danton de Paula Avelino. Menos de três meses antes, em outubro de 2015, no mesmo local e em circunstâncias semelhantes, havia sido torturado e assassinado o jornalista Vladimir Herzog.

Geisel soube da morte de Fiel pelo então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins. Era um domingo, o presidente estava na residência do Riacho Fundo, em Brasília, preparava-se para dormir quando o telefone tocou, Do outro lado da linha, Paulo Egydio narrou “o que tinha acontecido na carceragem do DOI-Codi.

“Ele me contou que tinha havido um segundo enforcamento. Passei uma noite de cão. Não dormi, irritado, pensando como iria agir”, diz Geisel sobre o episódio em depoimento, em 1994, para a professora de ciência política Maria Celina D’Araujo e o antropólogo Celso Castro, e que está no livro Ernesto Geisel, editado pela Fundação Getulio Vargas.

Thereza Fiel ainda guarda recortes de jornais da época que publicam notícias da exoneração do comandante do 2º ExércitoRovena Rosa/Agência Brasil

A preocupação e a irritação do presidente eram porque, após a morte de Vladimir Herzog, há menos de três meses, alertara o general Ednardo para o que estava acontecendo no DOI-Codi e determinara que o militar tomasse providências para evitar que outra morte ocorresse em uma dependência do 2º Exército. Naquela ocasião, ao contrário do que queria Ednardo, Geisel exigiu também que o general instaurasse um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar a morte do jornalista.

“Várias vezes, em encontro com Ednardo, em Brasília, eu havia dito: ‘Ednardo, olha São Paulo, vê lá o teu comando, as coisas não estão bem’. Quando resolvi mandar abrir o inquérito [da morte de Vladimir Herzog], e o Ednardo opôs algumas dificuldades, vi que havia problemas. Mas exigi que o inquérito fosse feito e que tudo fosse apurado. Não sei se o inquérito estava certo, ou não, mas o fato é que apurou que o Herzog tinha se enforcado. A partir daí, o problema do Herzog, para mim, acabou”, afirmou Geisel para Maria Celina e Celso Castro.

Thereza e as filhas Aparecida e Márcia com os recortes de jornais que publicam notícias sobre a morte do marido e as mudanças que ocorreram no 2º ExércitoRovena Rosa/Agência Brasil

Por isso, quando soube da morte de Manoel Filho, o presidente Geisel sabia que tinha que agir com firmeza por entender que a situação no 2º Exército estava fora de controle e que era preciso afastar o general Ednardo. “Eu vi que a solução era tirar Ednardo”, disse. O presidente, então, marcou uma reunião para  a manhã do dia seguinte, no Palácio da Alvorada. Convocou o ministro do Exército, Sylvio Frota, o chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), João Figueiredo, e o chefe do Gabinete Militar, Hugo Abreu, comunicou o ocorrido e pediu a Silvio Frota que exonerasse o general Ednardo. Frota não contestou. Para o lugar de Ednardo foi nomeado o general Dilermando Monteiro, pessoa próxima de Geisel. Com as mudanças feitas, o presidente praticamente desmantelou o aparelho de comando da tortura em São Paulo.

Relações com o ministro do Exército

Para Geisel, forjado na hierarquia e disciplina militar, o que estava acontecendo no 2º Exército era de responsabilidade do seu comandante e, por isso, Ednardo não poderia continuar ali. Ou ele não tinha controle sobre o que acontecia no DOI, ou era conivente. O episódio da exoneração do general Ednardo resultou, meses depois, na exoneração de Sylvio Frota do comando do Ministério do Exército. “O Frota não quis compreender isso, e acabei tendo que tirá-lo”, afirmou Geisel em seu depoimento.

O fato é que as relações do presidente com seu ministro do Exército não eram boas. Havia uma disputa de poder entre os dois. Sylvio Frota trabalhava para ser o próximo presidente, com o apoio dos militares linha dura. Geisel e o seu chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, pensavam na distensão do regime. De acordo com o jornalista Elio Gaspari, no livro O Sacerdote e o Feiticeiro, quarto volume da série A Ditadura Encurralada, a morte de Fiel precipitou o confronto de Geisel com o ministro do Exército.

“O presidente lançou-se ao primeiro choque frontal e público com um chefe militar. Era o choque que evitara em 1964, quando fizera vista grossa às torturas que haviam sido praticadas em quartéis do Nordeste, e que evitara nos primeiros anos de governo, quando se vira encurralado por Frota no caso da prisão do ex-deputado Marco Antônio Coelho”, diz Gaspari. Morto em novembro do ano passado, o mineiro Marco Antônio Tavares Coelho era deputado estadual no Rio de Janeiro e um dos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na época do golpe militar de 1964. Teve o mandato cassado, foi preso e torturado em 1975, quando era editor do jornal Voz Operária, do PCB.

Recorte de jornal guardado pela família Fiel notícia a decisão de Thereza de ir à Justiça contra o Estado brasileiroRovena Rosa/Agência Brasil

A exoneração de Sylvio Frota ocorreu em 12 de outubro de 1977. No depoimento para Maria Celina D’Áraujo e Celso Castro, Geisel fala sobre sua decisão. “Quando verifiquei que tinha a maioria dos generais comigo, pelo menos os generais mais graduados, senti que era a hora de afastá-lo. Senti também que não podia demorar mais porque o problema ia ficar mais difícil, com as adesões que ele iria ter. Não pude tirá-lo antes porque eu não sabia, ou não tinha ainda a certeza, de que o Exército ficaria comigo. Com a avaliação que fiz, foi aquele o momento que achei mais adequado.”

A tese da historiadora Mariana Joffily, doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), diz que as três mortes de filiados do PCB, Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e o tenente-coronel da Polícia Militar José Ferreira de Almeida, ocorridas em sequência no DOI-Codi paulista, representaram “o ápice do jogo de forças estabelecido entre o governo de Ernesto Geisel e a comunidade de informações do Exército”. “O pretenso suicídio de Manoel Fiel Filho levou à especulação, por parte de alguns setores, de que se trataria de uma provocação do DOI paulista à política [de distensão] do governo Geisel”, escreveu.