No livro “Episódios da História Monetária”, Milton Friedman cita a Ilha de Yap, na Micronésia, para ilustrar como a moeda, que é um bem fundamental, pode ter várias formas em diferentes épocas da história e em diversas culturas do planeta. Nesse pequeno país, os habitantes usavam pedras para servir de intermediários em suas trocas de bens e serviços. Hoje utilizamos diversos meios para realizar os nossos pagamentos, que vão desde notas e moedas metálicas, aos dispositivos eletrônicos como internet banking e celulares.
A velocidade e a praticidade para efetuar as transações estão aumentando, ainda que os custos de transação ainda sejam elevados. Temos aí, um conjunto de meios de pagamento (moedas, cartões, etc.) para liquidar transações financeiras em uma determinada moeda, o real, que é aceita por todos os agentes que estão no país. Devemos ter em mente que existem os meios de pagamentos e as moedas, mas essas duas coisas não se confundem.
O real, por exemplo, é a moeda brasileira aceita para liquidar as transações financeiras dos agentes, que serve de referência de conta para os preços dos bens e serviços e que é usada como reserva de valor. Em todos esses casos, o real está na vida das pessoas, colocando tudo o que está em nossa volta, medido em sua unidade. Pagamos R$ 20 nos ingressos de cinema, R$ 50 mil em um automóvel ou aplicamos R$ 20 mil em um CDB de um determinado banco para resgatarmos R$ 20,5 mil daqui alguns meses.
Todos os países têm seus preços denominados em suas moedas e têm seus meios de pagamentos para liquidar as suas transações. Esse é o mercado no qual uma moeda se estabelece: é necessário que os agentes utilizem essa moeda para liquidar suas transações, para guardar sua riqueza ou para dar preço a todos os bens e serviços. Podemos ter moedas como o dólar ou o real, ou podemos ter moedas como as pedras da Ilha de Yap, o sal, o ouro e outras formas exóticas do passado. Se uma mercadoria tem essas três características, ela pode ser eleita ao status de “moeda”. Caso contrário, ela pode desempenhar algum papel, menos o de moeda.
É aí que entra o Bitcoin, ou alguma das mais de oitocentas moedas virtuais criadas nos últimos anos. Segundo o site coinmarketcap.com, que lista 1.113 moedas, cujo valor de mercado estimado é de US$ 124,2 bilhões. O Bitcoin surgiu em 2008 e foi idealizado por um programador de nome Satoshi Nakamoto, porém ninguém o conhece de fato. Desde então ganhou fama e adeptos, e hoje o valor de mercado da moeda é de US$ 10.826,42, com um estoque total de US$ 185 bilhões.
Vejam, o tal Nakamoto não tem uma existência confirmada e o que os adeptos da moeda argumentam – sobretudo aqueles que a têm, que a negociam ou que a emitem – é que ela é à prova de governos, de roubo e que é uma nova invenção que revolucionará a forma como vemos o mundo. Se você realmente quer acreditar que uma moeda, que foi produzida por alguém que não tem existência confirmada, tomará o lugar das principais moedas do planeta, é necessário pensar se o Bitcoin realmente é uma moeda.
Para responder a essa pergunta crucial basta nos perguntarmos se ela é aceita como meio para liquidar as nossas transações. O Bitcoin é aceito pelo comércio, por empresas de serviços financeiros ou por alguma outra pessoa? Ainda que você saiba de alguém que o aceite, essa será uma imensa exceção. Poucos o aceitam, ou o que é pior, alguns nem mesmo ouviram falar sobre. A moeda só é aceita nas plataformas de negociação online e além disso, nada no mundo é referenciado em Bitcoin. A única função na qual é reconhecida, à semelhança das outras moedas, é a de reserva de valor. Alguns milhares de pessoas no mundo têm o usado para fazer sua poupança ou para especular com o valor do Bitcoin em relação ao dólar.
Portanto, hoje o Bitcoin não é uma moeda. Pode ser que um dia ele se torne uma, mas não hoje em dia. Eu diria que é uma cripto mercadoria especulativa e não uma cripto moeda. Logo, já que você não a utilizará como meio de pagamento para suas trocas ou como unidade para as contas, você a utilizará para especular. Apesar de todo o discurso libertário de seus promotores (sites, vendedores, gurus e alguns especuladores profissionais), o Bitcoin é uma roda de especulação acerca da promessa de um meio de pagamento se tornar uma moeda. Tal como o foram os projetos de Eike Batista ou as promessas de obras para a Copa.
É necessário que muita coisa ocorra até que o Bitcon vire, de fato, uma moeda. Para garantir que ela continue como uma mercadoria para especular, os promotores do Bitcoin se fiam na crença, não de todo errada, de que todos vamos confundir um bom meio de pagamentos com uma moeda. Mas não dá para acreditar que todos vamos fazer isso o tempo todo.
De fato, a existência de tecnologias de transferência de valores a baixo custo e grande proteção contra as fraudes é algo que tem muito valor. As maiores universidades dos EUA têm departamentos voltados ao estudo de coisas como a criptografia e os blockchains. Essa tecnologia, que coloca nos computadores pessoais, descentralizados, os pacotes de informações necessárias para processamento das operações financeiras, descartando empresas intermediárias que cobram taxa elevadas, é realmente uma tendência e deve aumentar a eficiência da economia.
Tudo o que aumente a segurança e a velocidade das transações, reduzindo os custos, colabora para o aumento do bem-estar social. É de se esperar que os agentes econômicos, racionais como são, passem a optar por esse tipo de solução como optaram pelos automóveis, pela penicilina e pelos telefones celulares. Essas novas tecnologias, que são a alma da sociedade capitalista, são um bem e não um mal.
Ocorre que muitas vezes as pessoas são levadas a acreditar que “novidades” irão revolucionar suas vidas, sem antes se perguntar se essas novidades realmente são revolucionárias. Essas “novidades” fazem as bolhas que criam e destroem valor nas sociedades desde o século XVII. Essas manias fizeram as ilusões e os pesadelos de milhões de pessoas, tomando as formas de tulipas, títulos de empresas fictícias, títulos de países da América em processos de independência, ações em bolsas, negócios imobiliários, hipotecas subprime, ou sabe-se o que mais. As bolhas são uma praga de nossa economia e as moedas virtuais são a bolha do momento.
Desde que foi lançada pelo programador que talvez não exista, o Bitcoin subiu mais de 6.000.000% em relação ao dólar. Uma bolha acontece quando os preços de um bem se descolam de seus fundamentos. E um Bitcoin custar US$ 3,3 mil ou US$ 5 mil é algo tão crível como eram críveis os títulos imobiliários que inundaram o planeta e levaram à ruína milhões de pessoas em 2008.
Nas bolhas todos acreditam que são espertos o suficiente para comprar no momento certo e vender também no momento certo, antes que a casa caia. As moedas virtuais têm uma propaganda vigorosa, que se espalha pela rede, com promotores bem-falantes, falando em revolução, liberdade e eficiência. Milhares de pessoas têm corrido para sustentar essa nova febre sem se atentar ao fato de que entrar e sair da criptomoeda custa caro, afinal as corretoras cobram caro pela conversão.
Além disso, a demanda é inflada pela lógica das manias, presentes em todas as bolhas, e está crescendo em toda a rede. À medida que os preços dessas moedas também sobem, aumentando sua emissão, outros agentes vão lançando novas moedas. Como nada é regulado e não há limite para a emissão, espera-se um fluxo considerável de novos emissores competindo entre si. Sempre que um preço sobe em mercados que não têm barreiras à entrada ou à saída, vários agentes são atraídos para ele e a oferta é aumentada rapidamente.
A competição fará com que os preços se equilibrem e que as moedas sejam transacionadas a valores muito próximos de seus custos de emissão. Como esses custos de emissão são muito baixos, a tendência é que as moedas convirjam a um valor próximo de zero. Então estamos falando de uma moeda que não é moeda, que foi produzida por alguém que não existe, que está em um mercado com oferta ilimitada e que já subiu 6 milhões por cento. E você, como todos os participantes de bolhas, acredita piamente que conseguirá sair no melhor momento antes que os preços desabem, por força dos irrefutáveis mecanismos de mercado.
*Artigo de opinião de Pedro Paulo Silveira, Economista-chefe da Nova Futura Investimentos