Exame
21/08/2008
Negócios
"Assim é difícil competir"
O executivo mexicano Patricio Mendizábal, presidente da operação brasileira da fabricante de eletrodomésticos Mabe, dona das marcas GE e Dako, vive um desafio inédito em sua carreira. Desde o mês passado, Mendizábal se vê vagando pelos labirintos da burocracia do governo federal na tentativa de salvar um investimento de 20 milhões de reais feito pela Mabe no Brasil. O motivo de sua peregrinação está ligado a um produto estratégico para a empresa no mercado brasileiro: uma máquina de lavar com capacidade de 15,1...
Exame
21/08/2008
Negócios
"Assim é difícil competir"
O executivo mexicano Patricio Mendizábal, presidente da operação brasileira da fabricante de eletrodomésticos Mabe, dona das marcas GE e Dako, vive um desafio inédito em sua carreira. Desde o mês passado, Mendizábal se vê vagando pelos labirintos da burocracia do governo federal na tentativa de salvar um investimento de 20 milhões de reais feito pela Mabe no Brasil. O motivo de sua peregrinação está ligado a um produto estratégico para a empresa no mercado brasileiro: uma máquina de lavar com capacidade de 15,1 quilos. Bastou uma canetada em Brasília para que o produto tivesse sua alíquota de imposto sobre produtos industrializados (IPI) aumentada de 0% para 20%. De um dia para outro, a máquina da Mabe subiu de custo — e de preço — e perdeu seu poder de competição no mercado. Após a decisão, Mendizábal iniciou uma cruzada com a esperança de reverter a situação. O executivo tentou discutir o assunto com o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, mas só conseguiu uma audiência para setembro. Da mesma forma, procurou a Receita Federal, mas também ainda não foi recebido. Quase em desespero, Mendizábal embarcou na comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a última viagem à Argentina, realizada no início de agosto. Ele queria interpelar pessoalmente o presidente, mas, em meio a um grupo de mais de 300 empresários e executivos que compunham a comitiva brasileira, não conseguiu chegar nem perto de Lula. “Fomos injustiçados por essa mudança de regras no meio do jogo”, diz Mendizábal. “Assim é difícil competir.”
O jogo a que Mendizábal se refere é dos mais disputados. Neste ano, a venda de máquinas de lavar deve movimentar quase 3 bilhões de reais no país. Serão cerca de 7 000 máquinas vendidas por dia, 25% mais do que no ano passado. Hoje, o mercado está dividido, basicamente, entre três grandes fabricantes. A líder, com boa margem, é a americana Whirlpool, dona das marcas Brastemp e Consul, que tem 54% de participação e quase meio século de presença no país. A segunda colocada é a sueca Electrolux, com 82 anos e participação de 33%. A terceira é a mexicana Mabe, que chegou ao Brasil há apenas cinco anos e responde por 9% das vendas de máquinas de lavar. Na posição de novatos e desafiantes, os executivos da Mabe decidiram que o melhor caminho para crescer seria investir na produção de máquinas de lavar com capacidade para grandes quantidades de roupa — um produto que os concorrentes não fabricavam e que gozava de alíquota zero de IPI. A estratégia deu certo num primeiro momento. Em três meses, a participação de mercado da mexicana dobrou. Mas acabou destroçada pela mudança de regras no imposto. Em menos de dois anos, a Receita Federal alterou por duas vezes a taxação dos produtos fabricados pela Mabe.
A primeira mudança ocorreu em setembro de 2006. Até então, as máquinas com capacidade de lavagem acima de 10 quilos tinham alíquota zero — os demais modelos, com capacidade menor, tinham taxação de 20%. A Mabe se adiantou ao mercado e produziu uma máquina de lavar com capacidade para 10,2 quilos. O produto foi um sucesso. Logo depois, Electrolux e Whirlpool lançaram produtos semelhantes. Uma vez abolida a alíquota zero, que passou a valer apenas para os produtos acima de 15 quilos, os mexicanos viram sua participação de mercado cair de 7% para 3% em apenas três meses. Apesar do golpe, a Mabe insistiu na estratégia. Investiu 20 milhões na produção de máquinas ainda maiores, com capacidade de 15,1 quilos. O objetivo, de novo, era se beneficiar da alíquota zero. O modelo chegou ao mercado em fevereiro de 2008 e, dessa vez, a empresa foi seguida apenas pela Electrolux. Em maio, um novo golpe. Uma determinação da Receita estabeleceu que apenas as máquinas acima de 20 quilos teriam direito à vantagem tributária, regra que entrou em vigor no início de agosto. Com a medida, a Mabe estima uma perda de faturamento de 140 milhões de reais por ano. Daí o desespero de Mendizábal.
Em suas desventuras brasileiras, a Mabe e o mexicano Mendizábal cometeram um erro que empresários locais têm, a duras penas, aprendido a evitar: confiar demasiadamente na duração das decisões do governo. “Achávamos que a primeira mudança fosse apenas uma maneira de compensação de arrecadação e imaginávamos que as alterações parariam por ali”, diz Mendizábal. Diante disso, ele não hesitou em investir num novo produto de alta capacidade que se encaixasse na faixa sem imposto. Para a Receita Federal, no entanto, a questão era outra. “As máquinas grandes eram isentas porque são destinadas ao uso industrial. Uma vez que o benefício passou a ser usado para produtos domésticos, perdeu o sentido”, diz Helder Silva Chaves, coordenador da Receita. “Resolvemos agir porque a regra foi deturpada pelos fabricantes.” O IPI tem como característica a possibilidade de ser alterado a qualquer momento dependendo da política econômica do governo. Ao corrigir a suposta distorção, porém, a Receita criou outra — de ordem concorrencial. Tanto a Mabe quanto a Electrolux (que não quis se pronunciar sobre o caso) tiveram seus planos de negócios frustrados e arcaram com os inevitáveis prejuízos gerados pela situação. E, diante do golpe nos concorrentes, a Whirlpool, líder de mercado, acabou sendo indiretamente beneficiada. “Mesmo sem querer, o governo melhorou as condições para a líder, atrapalhando, assim, a competição no setor”, diz Mário Roberto Nogueira, advogado especialista em concorrência do escritório Demarest & Almeida.
A confortável situação desfrutada pela Whirlpool foi resultado de uma habilidade que nem todas as empresas têm: a de compreender o funcionamento do governo. Como a Receita já havia se manifestado contra o benefício fiscal em 2006, a companhia decidiu consultar o órgão sobre as máquinas acima de 15 quilos, consulta a que a Receita simplesmente não respondeu. Diante da indefinição, a Whirlpool decidiu não apostar nesse segmento. “Não acho que tenha sido criado um problema concorrencial. Se algumas empresas foram prejudicadas, é porque tomaram uma decisão de negócios errada e agora têm de arcar com as conseqüências”, diz Yolanda Cerqueira Leite, diretora jurídica da Whirlpool. De fato, diferentemente da Mabe, a Whirlpool é uma empresa mais preparada para enfrentar as idiossincrasias do governo. No ano passado, a multinacional reestruturou seu departamento de relações institucionais, que envolve as áreas de comércio exterior, relações com governos, inovação e comunicação. O executivo responsável pela área, Armando do Valle, lidera uma equipe de 18 pessoas e divide seu tempo entre Brasília e as unidades da Whirlpool em São Paulo e Manaus. Valle ainda conta com a ajuda de uma consultoria, a Patri Relações Governamentais, que, diariamente, informa as decisões políticas e legais que podem afetar sua atividade.
As recentes taxas de crescimento da economia fizeram do Brasil um destino atraente para empresas estrangeiras nos últimos anos. Apenas em investimentos diretos, o país recebeu mais de 34 bilhões de dólares em 2007, um recorde histórico. A exemplo do que aconteceu com a Mabe, o grande desafio enfrentado por esses investidores é compreender o ambiente legal e regulatório local, um dos mais burocráticos e enigmáticos do mundo. No começo do ano, outra companhia mexicana, o grupo Elektra, formado pela rede de lojas de eletroeletrônicos Elektra e pelo banco Azteca, teve de alterar sua estratégia de negócios no país por força de exigências regulatórias. Para oferecer um dos produtos que vende no México, a garantia estendida para produtos eletroeletrônicos, o Elektra precisaria abrir no Brasil uma seguradora, exigência que não existe no México e tampouco em outros seis países da América Latina onde o grupo atua. “Eles pressionaram a equipe no Brasil para convencer o governo a abrir uma exceção, mas acabaram desistindo”, diz um executivo próximo à empresa. A solução encontrada foi fazer uma parceria com uma seguradora brasileira, o que deve reduzir os ganhos previstos para a operação. Da maneira mais desagradável possível, tanto o grupo Elektra como a Mabe, de Mendizábal, estão sentindo na pele alguns dos percalços vividos por quem deseja empreender no Brasil olhando para o que Brasília faz.
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