Emmanuel Macron está prestes a dar o último passo de sua verdadeira revolução política na França. Após vencer o segundo turno da eleição presidencial de maio com 66% dos votos, o candidato centrista de 39 anos está prestes também a consolidar seu controle sobre o Parlamento. Este domingo será disputado o segundo turno das eleições legislativas, que definem a distribuição das 577 cadeiras da Assembleia Nacional. Após o primeiro turno, disputado no último domingo, o partido de Macron, La République en Marche! (“A Républica em Movimento!”), terá candidatos disputando o segundo turno em 515 distritos (As eleições legislativas francesas, que de tão importantes são frequentemente apelidadas de “terceiro turno” da eleição presidencial, seguem o modelo britânico, com voto distrital por maioria simples, conforme explicamos em artigo sobre a recente eleição britânica). As últimas pesquisas indicam que o partido deverá conquistar mais de 400 cadeiras, concedendo a Macron um grau de poder que há muito tempo um presidente francês não obtia.
A maneira e a velocidade com a qual Macron vem alterando a aparência do cenário político francês é estrondosa. Em menos de um ano, o novo presidente conseguiu alterar todas as regras implícitas que regiam a política do país desde a fundação da 5ª República por Charles de Gaulle em 1968. Tendo deixado o cargo de Ministro da Economia do impopular governo de François Hollande, Macron não apenas transformou-se no primeiro presidente eleito a não pertencer a nenhum dos dois tradicionais partidos (Republicanos e Socialistas), como conseguiu o feito também inédito de deixar ambos de fora do segundo turno da eleição presidencial. Mesmo após este sucesso eleitoral, muitos no entanto ainda questionavam a capacidade do presidente recém eleito conseguir comandar uma maioria parlamentar, dada a falta de estrutura de sua legenda recém-formada, que à época ainda sequer havia lançado candidatos na maioria dos distritos eleitorais do país. Caso as previsões das pesquisas eleitorais se concretizem este domingo, estas dúvidas estarão devidamente enterradas.
Nada disso significa, entretanto, que Macron terá vida fácil ao longo dos próximos cinco anos no Palácio do Eliseu. Eleito com grandes promessas de reformar a política e a economia do país, apagando neste processo as tradicionais divisões entre direita e esquerda, propondo a adoção de boas ideias de ambos os lados, o presidente terá que encarar problemas antigos, de soluções tão complexas quanto polêmicas, tanto em sua agenda doméstica como na política externa.
O primeiro e principal desafio será colocar a economia francesa nos trilhos. Em alguns aspectos, o país surpreende positivamente. A produtividade média do trabalhador francês supera a média da OECD, o país figura entre os 15 melhores do mundo em termos de inovação, e a infraestrutura do país (especialmente em matéria de transportes) também é destaque positivo.Entretanto, no mais que todos estes fatores conspirem a favor, há décadas que a economia francesa convalesce daquilo que é frequentemente descrito como “le malaise français” (“o mal-estar francês”): uma perene sensação de que o país fica muito aquém de seu potencial.
Em muitos aspectos, essa sensação é justificada. A taxa de desemprego, com raros anos de exceção, teima em ficar acima dos 10%; dentre os desempregados, 42,8% estão nesta condição há mais de 12 meses (comparado à média da OECD de 35,5%), caracterizando o desemprego de longa duração.Dentre os mais jovens, o desemprego beira os 25%, ficando atrás apenas dos chamados “PIGS” (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha). Estes números apontam para um forte componente estrutural na taxa de desemprego francesa.
O país também sofre de fortes disparidades regionais. A região nordeste do país, tradicional berço industrial do país, sofreu economicamente com o declínio da indústria de carvão. Nas regiões de Nord-Pas-de-Calais e Hauts-de-France, a taxa de desemprego tem ficado em média quase 4 pontos acima daquela registrada na região de Île-de-France, onde se encontra a capital Paris. Este cenário de declínio econômico típico de regiões pós-industriais (o “rust belt” americano e o norte da Inglaterra saltam à mente), composto a uma sensação de abandono pelo governo central em Paris, tornou essa região terreno fértil para a retórica populista do Front Nationale, partido da extrema direita francesa. O mapa eleitoral abaixo evidencia a forte concentração do voto de Le Pen na região nordeste do país.
Outra fonte de preocupação são os indicadores fiscais do país. A dívida pública francesa está prestes a bater a casa de 100% do PIB, comparado a uma média de 89% para a zona do euro.
Desde 2008 o país não consegue respeitar o limite de 3% do PIB em déficits orçamentários estabelecido pela União Europeia (neste quesito, no entanto, a França não se encontra sozinha, com a maioria dos países europeus tendo encontrado dificuldades em respeitar este limite após longos anos de recessão e estagnação após 2008). Somados à baixa taxa de crescimento do PIB registrada nos últimos anos, estes números levaram o país a ter sua nota de crédito rebaixada pelas três principais agências (Moody’s, Standard and Poor’s e Fitch) nos últimos anos.
As soluções para esta série de problemas estruturais serão tão complexas quanto polêmicas. Para colocar as contas públicas nos trilhos, Macron propõe cortar 120.000 postos de trabalho do inchado setor público francês, além de um corte de gastos da ordem de €60 bi. Apesar de esta cifra ser inferior àquela que era proposta pelo Republicano François Fillon, que queria cortar €100 bi, ela tem o potencial de gerar um abalo de curto prazo a uma economia já convalescente.
Um rígido código de leis trabalhistas também torna o mercado de trabalho francês notoriamente inflexível – o que tende, por exemplo, a manter os níveis de desemprego do país altos mesmo ao passo que a economia vai se recuperando (e que países vizinhos, como Reino Unido e França, registrem metade do desemprego francês). Esta situação já forçou o ex-presidente socialista François Hollande, originalmente eleito com uma plataforma bastante à esquerda, a fazer uma guinada à la François Mitterand, aprovando ano passado uma grande reforma do código trabalhista (projeto que custou ainda mais a sua já baixa popularidade). Agora na presidência, Macron já tenta de cara mergulhar no grande desafio que será convencer os fortes sindicatos franceses a adotar a segunda fase desta reforma trabalhista que ele propõe. A visão de Macron é transformar a França em um social-democracia ao estilo nórdico, regida por um mercado de trabalho flexível, onde acordo negociados entre patrões e sindicatos se sobreponha àquilo que é legislado, amparado por uma generosa rede de assistência social. Convencer os sindicatos (e o público francês em geral) a confiar neste plano colocará a prova todo o charme político pelo qual Macron vem ganhando fama.
Superar as fortes disparidades regionais será outro grande desafio. Visando superar o declínio das regiões pós-industriais do país, Macron aposta em transformar a França em uma “nação de empreendedores”, com forte foco também em tornar a França em um polo de pesquisas das famosa áreas “STEM” (sigla em inglês que representa ciências, tecnologia, engenharia e matemática). Para tanto, Macron vem apostando forte em se apresentar ao mundo como o “anti-Trump”, utilizando inclusive a retirada americana do Acordo de Paris para tentar atrair pesquisadores e cientistas da área climática ao país. Todas estas ações, caso bem-sucedidas, serão indiscutivelmente benéficas à economia francesa como um todo (sem dizer ao mundo, refém das políticas obscurantistas de Trump). O desafio de Macron, no entanto, será fazer estes ganhos chegarem às regiões mais pobres do país, convencendo seus habitantes de que estas não são apenas mais uma série de políticas que, a seu ver, vislumbram Paris e os grandes centros urbanos às custas das regiões provincianas.
Não bastassem todos os desafios no âmbito doméstico, Macron também terá uma agenda externa complicada – especialmente no que toca à União Europeia. Eleito com um mandato e enfrentar a agenda da direita populista anti-UE que monopolizou o ano de 2016, caberá agora a Macron o desafio de fazer com que o bloco europeu volte a crescer de maneira sustentável, trazendo benefícios tangíveis a seus habitantes, de tal forma a cortar o mal do populismo pela raíz. A tradicional aliança franco-germânica, reforçada pela boa relação entre Macron e Angela Merkel, fortalece o coração do bloco frente ao início do maior desafio de sua história: as negociações de saída do Reino Unido. Para tanto, Macron vem caminhando a tênue linha entre estender as mãos aos britânicos (declarando, por exemplo, que as portas sempre estarão abertas para o país retornar ao bloco), mas ao mesmo tempo adotando uma linha de negociação que deixe claros os custos de deixar o bloco, dissuadindo outros países de seguir o mesmo rumo.
Tornar o status de país membro da EU mais atraente também passa diretamente por reformar o bloco de maneira a evitar uma repetição dos anos de penúria pós-2008. Os diversos desafios e as diferentes opções neste sentido meritam um texto futuro dedicado exclusivamente ao tema; é suficiente dizer aqui, no entanto, que não será fácil obter o consenso necessário entre 27 países membros que diferem substancialmente em suas preferências. Macron já enfrenta uma prévia das dificuldades que terá nessa área: ao anunciar sua intenção de criar mecanismos na lei europeia que impeçam a aquisição por grupos estrangeiros de empresas em setores considerados estratégicos (na qual o presidente francês conta com o apoio de Alemanha e Itália), ele já enfrenta resistência dos países mais liberais do norte europeus, entre eles a Holanda, os países escandinavos, e os bálticos.
Finalmente, Macron terá lidar com a crise dos refugiados do norte da África e do Oriente Médio, que apesar de ter se amenizado com relação a seu ápice no verão europeu de 2015, perdura de maneira crônica e com o potencial de novos picos de fluxos migratórios. Fiel a sua visão liberal, Macron tem advocado a manutenção de uma política de portas abertas, novamente com o respaldo de Alemanha de Merkel. A relutância por parte dos países do leste Europeu (sobretudo Hungria, Polônia e República Tcheca) em acordar uma política europeia de repartição dos refugiados já vinha complicando este processo desde o início da crise. Atualmente, soma-se a isso a crescente onda autoritária de Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, que distancia cada vez mais o país da esfera de influência europeia. Como a Turquia é rota dos refugiados oriundos do Oriente Médio em direção à Europa, a cooperação turca no controle de fronteiras é essencial.
Todo este cenário complexo, tanto no âmbito doméstico como no externo, irá impor a Macron desafios que, desde já, colocaram em cheque todo seu carisma e popularidade. Por mais que o novo presidente tenha o respaldo de uma expressiva votação no segundo turno, além do amplo controle que espera-se que obtenha na Assembleia Nacional, é importante salientar que a França segue uma nação dividida: em primeiro turno, Macron obteve menos que ¼ dos votos, que pela primeira vez na história francesa se dividiram entre cinco principais candidatos. Sua votação de segundo turno remete mais ao voto anti-Le Pen do que a uma grande expressão de apoio a Macron. O contorno bem-sucedido destes desafios definirá o destino de Macron na história francesa: seu fracasso o colocará em uma longa lista de presidentes que se deixaram afundar pela complexidade que é governar este país de 66 milhões no coração da aliança ocidental; seu sucesso poderá ser lembrado como o início da Sexta República.