Já é hora dos EUA começar a considerar a criação de uma versão digital do dólar — ou arriscar e perder a chance de trazer à tona seus “valores fundamentais” sobre o futuro do dinheiro.
É exatamente essa a argumentação de J. Christopher Giancarlo, ex-presidente da Comissão de Negociação de Futuros de Commodities (CFTC, na sigla em inglês).
Nessa sexta-feira, o Digital Dollar Project, a grande parceria entre a Digital Dollar Foundation de Giancarlo e a empresa de consultoria Accenture, lançou seu primeiro whitepaper (documento informacional para promover ou destacar os recursos da solução, do produto ou serviço oferecido).
O documento reitera muitas das ideias que Giancarlo e outros envolvidos no projeto já apresentaram. É mais um argumento filosófico do que descrição técnica.
Porém, também ilustra como algumas das questões principais de design técnico em relação a moedas emitidas por bancos centrais (CBDCs) não podem estar separadas das questões filosóficas. O whitepaper que agora é a hora dos EUA se fazerem essas perguntas.
“Está acontecendo um tipo de conversa global, que parece acontecer uma vez a cada geração, tentando responder à pergunta: ‘O que é dinheiro?’”, diz Giancarlo.
Ele dá o crédito ao bitcoin por ter iniciado essa conversa há mais de uma década. Mas agora a discussão está aumentando, diz ele, graças ao surgimento da Libra, a iminente CBDC da China — e à COVID-19.
A pandemia resultou em questões existenciais sobre o dinheiro “além de apenas entre reguladores, bancos centrais e autoridades, mas também entre pessoas comuns, principalmente as que não têm acesso completo ao sistema bancário”, argumenta Giancarlo.
“De repente, estamos fazendo a seguinte pergunta: “como fornecemos auxílios a elas durante uma crise de forma imediata e adequada?”.A emissão desenfreada do dólar fez todo o restante do mundo se questionar: como esse dinheiro está sendo repassado para aqueles que precisam do auxílio financeiro?
Em março, influentes representantes democratas da Câmara dos Representantes dos EUA parecem ter concordado que um dólar digital é necessário como uma forma de distribuição dos benefícios de auxílio econômico.
Um rascunho de um projeto de lei de estímulos monetários apresentou um plano de exigir que o Federal Reserve permitisse que usuários abrissem contas e acessarem seus dólares com um software de carteira.
O projeto de lei da Câmara descrevia um sistema baseado principalmente nas contas. Ter uma conta no Fed poderia, em teoria, parecer como uma conta em um banco privado, mas apenas seria gerenciada por uma instituição pública, assim como o Postal Service.
Na verdade, o projeto de lei foi proposto usando o Postal Service como um fornecedor de serviço nesse sistema: como se caixas eletrônicos fossem administrado pelos correios em vez de um banco comercial.
Giancarlo e seus colegas do Digital Dollar Project têm um princípio de design diferente em mente. Eles acreditam que um sistema baseado em contas não é suficiente e que, além disso, o dólar deve ser “tokenizado”.
O documento define o termo como “o ato de transformar um ativo, um bem, um direito ou uma moeda em uma representação com propriedades suficientes que atestem e transfiram governança”.
O paralelo mais próximo do mundo físico seria uma cédula de dólar, conhecida como um “instrumento titular”.
O whitepaper descreve o que o Digital Dollar Project almeja com uma abordagem de “instrumento titular digital”, que aproveitaria a tecnologia de registro distribuído (DLT) como a melhor forma de manter a estrutura flexível e para servir de “prova no futuro”.
O papel do dólar como moeda de reserva global dá aos EUA poder desproporcional para impor seus valores em outros membros do sistema financeiro global (Imagem: Pixabay/geralt)
Porém, se o dólar deve ser tokenizado ou não é uma das inúmeras perguntas relacionadas ao design fundamental que devem ser respondidas antes de um sistema ser construído.
Talvez a pergunta mais incômoda seja em relação à privacidade: até que medida um dólar tokenizado preservará a privacidade do dinheiro? Como exatamente as regulações antilavagem de dinheiro deverão ser aplicadas e qual tecnologia deverá ser usada para verificar identidades visuais nesse caso?
Algumas dessas perguntas podem ser sobre valores e expectativas, pois ambas podem variar significativamente em diferentes culturas.
Por exemplo, cidadãos americanos têm expectativas específicas em relação à supervisão do governo que não são as mesmas expectativas dos cidadãos na China. Da mesma forma, cidadãos europeus têm diferentes expectativas dos americanos em relação à supervisão comercial.
Sem dúvidas, esses sistemas divergentes de valor estarão embutidos nos sistemas monetários e digitais do futuro, afirmou Giancarlo.
Hoje, o papel do dólar como moeda de reserva global dá aos EUA poder desproporcional para impor seus valores em outros membros do sistema financeiro global. Teoricamente, um sistema monetário digital complacente teria esse poder.
“É importante levar esses valores para o novo dinheiro digital”, afirma Giancarlo. Ou esses valores são integrados no dinheiro digital ou a nação deverá aceitar valores com os quais não está acostumada. É por isso que ele considera a urgência dessa situação.
“O jogo começou e existem grandes jogadores”, afirmou ele. “Até agora, os EUA estão sentados na arquibancada e eu acho que é hora dos EUA entrar no jogo.”
Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento