Na primeira audiência pública para debater a reforma administrativa na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, o governo adotou como estratégia a defesa de que as mudanças resgatam a autoestima do servidor, enquanto opositores avaliaram que o fim da estabilidade abre espaço para corrupção.
A reunião desta segunda-feira (26) faz parte de um acordo envolvendo a tramitação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) na CCJ. A presidente do colegiado, Bia Kicis (PSL-DF), aceitou realizar sete audiências para debater as mudanças. A CCJ é responsável por analisar a constitucionalidade do texto, que, se aprovado, segue para uma comissão especial, encarregada de entrar no mérito.
A audiência foi aberta por Caio Mário Paes de Andrade, secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, que citou os gastos do governo para manutenção da máquina pública.
Somente no Executivo federal, nós gastamos R$ 8,3 bilhões com 69 mil servidores que trabalham em funções que nós consideramos extintas”, disse, exemplificando com o caso de operadores de Telex (sistema de comunicação escrita). “O operador de Telex até hoje está na nossa folha de pagamento, mas não há mais Telex para ele operar, porque não existe mais Telex”, disse.
“Ao mesmo tempo, nós não conseguimos preparar esse cidadão para um outro trabalho porque caímos no desvio de função. Então, o assunto, o problema é muito complexo.”
Na avaliação do secretário, a PEC permite o resgate da autoestima do servidor público. “Hoje uma grande parte da população tem uma imagem distorcida dos servidores públicos”, afirmou. “O estereótipo é de que servidores públicos trabalham pouco, que vivem em um mundo paralelo, que são egoístas e que não pensam no Brasil. Isso é uma generalização.”
Andrade elogiou os servidores públicos, mas disse que é preciso criar mecanismos para torná-los mais produtivos. “Claro que existem os espertinhos, assim como também há os espertinhos lá na iniciativa privada”, ressaltou. Para o secretário, é preciso dar “propósito” para os servidores.
“Trabalhar sem propósito é frustrante, nivela o ser humano por baixo. No mundo da informação na palma da mão, não dá para passar a vida batendo o carimbo. Precisamos despertar propósitos adormecidos”, acrescentou.
Presidente da Anape (Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF), o procurador Vicente Braga rebateu um dos argumentos do governo e afirmou que a PEC atinge servidores atuais. “Basta colocar o ponto da dedicação exclusiva, que está prevista na redação originária da PEC”, afirmou. “Ela atinge frontalmente todos os servidores públicos, por exemplo, os que ocupem carreiras típicas de Estado.”
Para ele, o simples fato de o servidor dar uma palestra nas horas vagas e cobrar por ela ou escrever um livro e receber o direito autoral não podem ser encarados como forma de atrapalhar o exercício da função.
Braga afirmou que a proposta tem pontos que violam a Constituição, como o fim da estabilidade. “Ela não é um escudo para o servidor público. Ela é um escudo para o cargo daquele servidor para blindá-lo de qualquer interesse ilegítimo por parte de quem quer que seja, um cidadão, um gestor, um superior ou qualquer outra pessoa.”
“Nós não podemos acreditar que o fim da estabilidade será um benefício para este país. Muito pelo contrário, o fim da estabilidade será, sim, uma porteira aberta para mandos e desmandos, e, até podemos afirmar, para mais atos de corrupção, e nós não podemos admitir isso”, disse. “Nós temos que blindar a figura do servidor público.”
O procurador lembrou o papel do SUS (Sistema Único de Saúde) no enfrentamento da pandemia de Covid-19. “Quem está buscando desenvolver uma vacina 100% nacional e está aprimorando as vacinas que estão chegando dos outros países é a Fiocruz, é o Butantan, ocupado por servidores públicos, servidores públicos federais ou estaduais, e por aí em diante”, lembrou.
Entenda a Reforma Administrativa
Um dos principais objetivos da proposta de reforma administrativa do governo federal é a redução do peso da folha salarial do funcionalismo para os diversos entes do Estado. O tamanho dessa economia ainda é incerto, e instituições traçam diferentes projeções do impacto que uma mudança nas regras de contratação, remuneração e demissão de servidores traria aos cofres públicos.
As estimativas chegam a R$ 816 bilhões de economia em dez anos para União, estados e municípios, em cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fundação pública vinculada ao Ministério da Economia. Em uma projeção mais conservadora, a Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado Federal, prevê uma economia de R$ 128 bilhões para União e estados até 2031.
O governo não anexou à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma administrativa qualquer cálculo da economia potencial. A justificativa é que a conta depende ainda de decisões sobre as carreiras dos servidores, que não estão contempladas no texto da PEC e que ficarão para projetos de lei, numa segunda fase da reforma que depende da aprovação prévia da mudança constitucional.
Ipea: até R$ 816 bilhões em dez anos
As estimativas variam em razão da metodologia utilizada. O estudo do Ipea, divulgado em setembro de 2020, levou em consideração a economia com o congelamento de salários em 2020 e 2021, além de uma menor reposição de servidores, da redução da remuneração inicial para ingressantes no serviço público e do alongamento nos degraus das carreiras.
Embora o texto-base da PEC tenha deixado de fora membros de Poderes (juízes, desembargadores, procuradores e parlamentares), os cálculos levaram em conta a inclusão dessas categorias na reforma. Em diferentes cenários, a redução nos custos para os cofres públicos variaria entre R$ 673 bilhões e R$ 816 bilhões nas projeções do instituto.
CLP: R$ 400 bilhões até 2034
Estudo do Centro de Liderança Pública (CLP), publicado também em setembro de 2020, chegou a números mais modestos. Nas estimativas da entidade, a economia acumulada com despesas da folha de pessoal em todo o setor público chegaria a R$ 178,7 bilhões em 2030 e a R$ 400,3 bilhões em 2034.
Os cálculos resultam de um cenário em que servidores públicos tivessem jornada e vencimentos equiparados aos do setor privado, uma das propostas da reforma. Para isso, a estimativa do CLP leva em consideração dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobre as horas e o salário médio dos trabalhadores de ambas as esferas.
Ministério da Economia: R$ 450 bilhões em dez anos
Sem apresentar cálculos detalhados, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou, em outubro passado, que a economia para a máquina pública com a reforma administrativa pode chegar a R$ 450 bilhões em dez anos. Isso levando em consideração uma taxa de reposição, que é o número de servidores contratados versus o total de aposentados, de 26%.
Anteriormente, o governo federal havia anunciado uma economia potencial de R$ 300 bilhões no mesmo período, considerando uma taxa de reposição de 70%.
IFI: R$ 128 bilhões para União e estados em dez anos
A Instituição Fiscal Independente (IFI), por sua vez, concluiu que a adoção de três medidas em um processo de reforma administrativa deve levar a uma economia de R$ 128 bilhões na União e estados em dez anos. Para os cálculos, foram consideradas três mudanças nas regras atuais.
A primeira seria o alongamento de carreiras, dobrando-se o prazo entre o início e o topo da carreira, de 20 para 40 anos. A segunda seria uma redução de salário inicial das carreiras – no caso da União, caindo da média de R$ 7,4 mil observada em 2018 para R$ 5,2 mil. E a terceira, uma diminuição na taxa de reposição de 100% para 60%.
Nenhuma das três iniciativas consta da PEC da reforma que tramita na Câmara dos Deputados, mas são consideradas em uma segunda fase do processo, após a aprovação da emenda constitucional. “A economia advinda das medidas seria relativamente pequena no curto prazo, mas cresceria exponencialmente, podendo atingir o acumulado de R$ 128 bilhões em dez anos (em 2031), dividida entre R$ 57 bilhões relativos à União e R$ 71 bilhões relativos aos estados”, afirma o analista Alessandro Ribeiro de Carvalho Casalecchi no estudo.
O estudo simula ainda uma suspensão temporária de progressões e promoções na carreira, na hipótese de acionamento de medidas adicionais de contenção de despesas. Caso a medida fosse acionada em 2025 e 2026, geraria uma economia adicional de R$ 43,2 bilhões no acumulado até 2031 – R$ 21,8 bilhões para a União, e R$ 21,3 bilhões para estados.
Dieese: deterioração da qualidade do serviço público
De outro lado, entidades como o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), mantida pelo movimento sindical, avaliam que a aprovação de uma reforma como a proposta pelo governo poderia restringir a qualidade do serviço público.
Em uma nota técnica publicada no início deste mês, o Dieese diz que a redução na estabilidade dos servidores pode implicar “descontinuidade da prestação do serviço, perda da memória técnica, dificuldade de planejamento a longo prazo, rompimento do fluxo de informações e, não menos importante, estímulo à patronagem política”.
A entidade também critica a necessidade de uma etapa adicional na seleção para ingresso no funcionalismo, que a PEC prevê implantar com o nome de vínculo de experiência, na qual o candidato é avaliado antes de ser efetivado. “A depender de como seja feita essa avaliação, pode-se criar um instrumento de seleção e contratação no serviço público baseado na pessoalidade e nas arbitrariedades de chefias e gestores(as)”, diz o documento.
Outro ponto criticado é a criação dos chamados cargos de liderança e assessoramento, em substituição aos cargos em comissão e funções gratificadas, o que permitiria, para a entidade, o loteamento pelo governo com apadrinhados. E a permissão para os chamados instrumentos de cooperação aprofundaria a transferência de atividades públicas para o setor privado, na avaliação do Dieese.
Com informações da Gazeta do Povo