Matéria publicada pela Exame mostra como a pandemia trouxe
a urgência da transformação digital e pegou a Via Varejo
(BOV:VVAR3) no meio de uma transformação interna.
Não houve um dia normal desde que chegamos. Quando veio a
pandemia, já estávamos em clima de guerra e com a faca nos dentes.”
É assim que o presidente da Via Varejo, Roberto Fulcherberguer,
explica seus mais que intensos 12 meses à frente da varejista dona
das marcas Casas Bahia, Ponto Frio e Extra.com. A chegada do novo
coronavírus acentuou a urgência de uma reestruturação que já estava
revirando as entranhas da empresa que fatura 30 bilhões de reais
por ano. Fulcherberguer, ex-vice-presidente e ex-conselheiro da
companhia, está no cargo desde que o antigo dono, o Grupo Pão de
Açúcar, vendeu as ações na bolsa e a família Klein, fundadora da
Casas Bahia, reassumiu as rédeas como principal acionista. Se as
varejistas brasileiras viveram meses de alta octanagem desde março,
a Via Varejo somou uma revolução à outra e se dedica a fazer em
semanas um trabalho que não foi feito em uma década. A faca nos
dentes vai ser suficiente? É o que o executivo tenta mostrar a 85
milhões de clientes, 348.000 acionistas, 43.300 funcionários e
centenas de fornecedores.
O primeiro momento foi de pânico. Os diretores passaram duas
tensas e longas horas reunidos após a decisão de fechar todas as
1.073 lojas no meio do sábado 21 de março. Situação para lá de
inédita. A direção estava especialmente preocupada com o baque nas
finanças. A Via Varejo estava muito atrasada em relação às suas
rivais na frente digital e na integração logística das lojas. No
primeiro trimestre, as vendas totais de 7,8 bilhões de reais foram
praticamente iguais às do Magazine Luiza. Só que a concorrente
originou o dobro nos canais online: 53% do total vendido ante 27%.
Com as lojas fechadas, acelerar o digital virou prioridade total.
Com quase 20.000 vendedores em casa, veio em abril a solução que
virou caso de estudo do Facebook e passou a ser copiada varejo
afora: o botão “Me chama no zap”. Um clique conecta o consumidor ao
vendedor da loja mais próxima, que dá uma consultoria sobre o
produto e até auxilia na transação. Ou o caminho inverso: o
vendedor procura o cliente no WhatsApp e oferece um desconto no
produto que foi pesquisado recentemente. O resultado: 80% das
vendas assistidas são concluídas e o tíquete de compra é de 30% a
50% maior do que numa venda online tradicional.
No mês de março isolado, o e-commerce representava 34% das
vendas da Via Varejo e pulou para 80% na pandemia. Na média,
durante a crise, somente 20% das lojas conseguiram se manter
abertas na maior parte do tempo. Houve uma expansão do faturamento
total a partir de maio na comparação com o ano passado, e não
queda, como seria de esperar, segundo Fulcherberguer (leia a
entrevista abaixo). O número de usuários dos aplicativos das marcas
dobrou durante a pandemia, de 8 milhões para 15,5 milhões. Mesmo
com 26 centros de distribuição, a empresa tinha um novo desafio em
larga escala para conseguir entregar os produtos comprados online:
integrar as lojas físicas espalhadas pelo Brasil. Até a Amazon,
quando comprou o Whole Foods, aterrissou da nuvem para o mundo
físico. No varejo, essa é uma nova regra de ouro, que ficou por
anos em segundo plano na Via Varejo: além de ser um ponto para o
cliente retirar a encomenda online, a loja agora é também um local
para os entregadores se abastecerem. No fim de 2019, o grupo tinha
60 lojas-estoques e o objetivo era dobrar esse número até o fim do
ano. Mas em junho já eram 180 unidades integradas e em dezembro
serão mais de 300 — 30% do total. A concorrente Magazine Luiza já
tem mais de 600 lojas integradas nesse sistema, 60% de seus pontos
de venda. Frederico Trajano, presidente e herdeiro da companhia, é
visto como um dos pioneiros dessa integração no Brasil. Para
completar o esforço, a Via Varejo comprou a Asap Log no começo da
crise. A startup é especializada na chamada “última milha da
entrega” e suas soluções usam o que estiver disponível: motoboys,
motoristas de aplicativo e uma rede de entregadores cadastrados. A
tacada, de valor não revelado, economizou um ano de desenvolvimento
de uma solução interna.
Os resultados declarados pela Via Varejo na pandemia animaram o
mercado — embora muitos só vão crer quando virem os números
cravados no balanço do segundo trimestre. “Se o mercado está
curioso para ver, imagine quanto nós estamos loucos para mostrar”,
diz Fulcherberguer. A ansiedade de todos vai durar até 12 de
agosto, conforme o calendário de balanços da empresa. O valor da
companhia na B3 era de 18 bilhões de reais ao fim de fevereiro,
despencou para 6,8 bilhões no fechamento de março e está agora
acima de 28 bilhões de reais. No ano, a alta é de quase 60%
(semelhante à do Magalu). Entre os que acreditam no potencial da
Via Varejo há milhares de pequenos investidores. A base de
acionistas de pessoas físicas deu um salto de 185% desde setembro
de 2019. Não é só o investidor novato que a empresa precisa
conquistar com resultados. Os novos consumidores também. A
companhia conseguiu aumentar sua interação nas redes sociais, porém
68% dos comentários ainda foram negativos em 2019, de acordo com um
levantamento do Itaú BBA.
O quinteto fantástico
O tom de brincadeira de Fulcherberguer com os números da empresa
denota a tranquilidade de quem levantou 4,5 bilhões de reais em uma
oferta de ações na bolsa em junho. Mas também é parte do clima que
impera na nova direção. “Fulcha”, como é conhecido dentro da
companhia, lidera um time de velhos conhecidos. O grupo trabalha
junto em uma sala única e aberta, decorada sem luxo, em São Caetano
do Sul, berço da Casas Bahia. Na maioria dos dias da pandemia, os
diretores estiveram reunidos presencialmente decidindo tudo em
conjunto.
Desde que uniu a Casas Bahia ao Ponto Frio em 2009, a família
Klein se manteve acionista no negócio, que passou a ser controlado
pelo Grupo Pão de Açúcar (GPA). Em 2012, o varejista francês Casino
assumiu o comando do GPA e de suas controladas. Como minoritário
relevante, Michel Klein pôde manter Fulcherberguer, cuja
experiência no varejo começou na extinta Arapuã e inclui 16 anos na
própria Casas Bahia e na Via Varejo, como conselheiro. Em junho do
ano passado, Klein voltou ao comando da varejista. Sem
financiamento, não conseguiu se tornar controlador majoritário, mas
passou a ser o acionista de referência, depois de o GPA pulverizar
as ações da empresa em leilão na bolsa. Na operação, que avaliou a
empresa em 6,5 bilhões de reais, a família consolidou-se como a
maior acionista — atualmente, 22,75% do capital. O plano de Klein,
que concedeu entrevista por e-mail, é elevar, se possível, sua
participação, mas sem se tornar controlador. Para topar assumir a
presidência, Fulcherberguer teve de ser convencido por Abel
Ornelas, hoje vice-presidente comercial e de operações e o primeiro
a embarcar no projeto. A dupla se conhecia da própria empresa.
Ambos saíram em janeiro de 2013, logo após o Casino assumir.
Uma vez juntos, convidaram Orivaldo Padilha para ser
vice-presidente financeiro e de relações com investidores — o
terceiro de volta ao posto que teve até 2013. O próximo eleito foi
Sérgio Leme, ex-presidente da Whirlpool no México e conhecido pelas
duras negociações para a linha branca. Quando o convite chegou, ele
estava na Pátria Investimentos. “Eu sabia do potencial porque
estive do outro lado do balcão”, diz. Helisson Lemos, diretor de
inovação digital e recursos humanos, foi o quinto. Levou um mês
para embarcar. Precisou fazer a transição da Movile, holding de
startups que inclui iFood e Zoop, onde estava havia apenas dois
anos, após 17 anos de Mercado Livre. É o nome recorrentemente
citado por investidores como o “santo milagreiro” da difícil
transição para a cultura digital. Desde que chegou, a equipe de
tecnologia cresceu mais de 30%, de 900 para 1.200 pessoas. É peça
fundamental para pensar e coordenar projetos e atrair talentos. O
alinhamento dos executivos é também financeiro. Quando assumiram,
fazia anos que a Via Varejo vinha perdendo participação de mercado
para o Magalu e só dava prejuízos. A operação digital tinha de ser
revolucionada, porque até 2017 ficava apartada em outra empresa,
controlada pelo Casino. Para engajar o time, o pacote de
remuneração inclui um generoso plano de opção que lhes dará uma
fatia de nada menos do que 4% do negócio ao fim de cinco anos — se
fosse hoje, seria o equivalente a 1,1 bilhão de reais.
A valorização da empresa desde a largada da nova gestão é de 22
bilhões de reais. Mas esse número fica pequeno quando comparado aos
parâmetros do mercado. Com quase as mesmas vendas e igual
quantidade de lojas, o Magalu vale 130 bilhões de reais. A empresa
forjada por Luiza Helena Trajano, com um laboratório de inovação
dentro de casa, é vista hoje como uma aproximação das puras techs
internacionais. O Mercado Livre está avaliado em nada menos do que
o equivalente a 270 bilhões de reais, com alta de 75% desde o fim
de 2019. Nos Estados Unidos, a referência do varejo online Amazon
teve a mesma escalada: a ação teve um ganho de 73% em 2020 e já
vale 8 trilhões de reais. Na opinião de dois grandes investidores,
o valor atual da Via Varejo reflete a correção dos problemas do
varejo físico e as indicações de que está no caminho certo para o
digital. E mais nada. Enquanto o valor de empresa da Via Varejo
equivale a 11 vezes o Ebitda (lucro antes de juros, impostos,
depreciação e amortização) estimado para este ano, essa relação é
de 162 vezes no Magazine Luiza, segundo cálculos do BTG Pactual. O
Magalu tem hoje a segunda maior penetração de aplicativos de
varejo, com 18,6% em maio. Só perde para os 32% do Mercado Livre. A
Via Varejo tem 8,2%, conforme dados do Itaú BBA, atrás dos 9,5% da
Amazon.
O caos
Não foram poucas as tentativas do Casino de dar rumo ao negócio.
A Via Varejo teve sete presidentes em oito anos e meio. Não faltou
dinheiro, faltou gestão. “Eles compraram e investiram em tudo que
existia de melhor em sistemas e tecnologia. Só que nada se
conversava”, diz Helisson Lemos, vice-presidente de inovação.
“Havia mais de 2.000 projetos simultâneos em andamento. Passei os
primeiros meses só limpando isso. Cada presidente que passava
queria deixar sua marca.” A bagunça era tanta que, num primeiro
momento, a companhia teve de tirar do ar a plataforma online.
“Quando chegamos aqui, encontramos logo de cara 40.000 clientes da
Black Friday de 2018 tentando reaver seu dinheiro. A era ótima em
dar explicações para suas falhas”, resume o vice-presidente
financeiro Orivaldo Padilha. Os prazos de entrega anunciados aos
clientes eram diferentes dos prazos internos da logística. Todos
ficaram de cabelo em pé quando descobriram que a área funcionava
apenas com dois turnos. Pedidos após as 18 horas só eram
processados no dia seguinte.
De cara, a nova gestão trocou nada menos do que 40 diretores. No
primeiro sábado, foram todos da nova equipe para Osasco visitar as
lojas. O cenário era de horror: unidades malcuidadas (não havia nem
cadeiras para os clientes) e vendedores desmotivados. Nos primeiros
três meses, a companhia trocou 7.000 computadores, limpou e renovou
a fachada de mais de 200 unidades e climatizou 600. Outro problema
que começou a ser arrumado foi a relação com fornecedores. A
principal fortaleza da Casas Bahia, a margem obtida em duras
negociações, foi abandonada, e os contratos eram de abastecimento,
como são os de supermercados. Fulcherberguer e Ornelas foram até a
Ásia negociar diretamente com as matrizes de vários fornecedores.
Não bastasse ter de corrigir as operações, quatro meses depois de
assumirem e às vésperas da Black Friday, chegou à direção uma
denúncia de fraude na contabilidade. Após cinco meses de
investigação, um rombo de 1,2 bilhão de reais por manipulação nas
provisões para processos trabalhistas foi encontrado. O efeito
dessa limpeza ocultou um marco interno, o lucro líquido de 78
milhões de reais no quarto trimestre — o primeiro desde o começo de
2017. A margem da geração de caixa naquele trimestre dobrou em
relação a 2018, de 4% para 8% — agora, com a pandemia, o resultado
financeiro das mudanças ficará mais para a frente. O momento da
virada na visão da gestão foi a Black Friday de 2019, quando
venderam o recorde de 1,1 bilhão de reais em 24 horas sem
interrupção de sistema e com 95% das entregas em uma semana. Era
uma mostra, para a nova gestão, de que dava para jogar na primeira
divisão.
Capitalizada, a Via Varejo vai investir 1,5 bilhão de reais em
tecnologia. O plano inclui atualizar os aplicativos e colocar um
caminhão de recursos em sistemas internos. A companhia quer tirar
mais um atraso da frente: a plataforma de marketplace, a revenda
online, que gera sortimento e recorrência. A Via Varejo já opera
assim com 5.000 outros varejos, mas não tem condições tecnológicas
de ampliar essa base, enquanto a concorrência tem 26.000. A
expectativa é resolver a questão nos próximos meses. Os planos
estão na direção correta, na visão de Alberto Serrentino, sócio da
consultoria Varese. Contudo, o desafio de virar uma cultura de
décadas calcada em lojas físicas para o digital não é trivial. “O
futuro hoje nem está mais na Amazon ou no Mercado Livre. Está na
China. Lá a integração dos varejos físico e digital está muito mais
avançada. As companhias nem se preocupam onde a compra foi feita,
se no computador, no celular ou na loja. É tudo misturado a serviço
do cliente. Essa é a orientação desafiadora: a comodidade do
consumidor”, diz.
Em 2019, o comércio eletrônico no Brasil teve crescimento de
16%, movimentando um total de quase 62 bilhões de reais, de acordo
com dados da consultoria eBit, da Nielsen. A expansão veio toda do
chamado mobile-commerce: celulares e tablets. Em novembro, um marco
sem volta: o número de vendas por aparelhos móveis superou pela
primeira vez o total do faturamento vindo de computadores. A mesma
consultoria calculou o que a pandemia pode fazer com os números de
2020. De fevereiro a 16 de março deste ano, as vendas eletrônicas
foram de 7,4 bilhões de reais — sem coronavírus no varejo. Após o
fechamento do comércio, de 17 de março a 26 de abril, a soma subiu
14%, para 8,4 bilhões. O especialista do Itaú BBA Thiago Macruz,
que acompanha até as curtidas de cada uma das empresas, diz que,
embora também analise os resultados financeiros da Via Varejo, está
mais preocupado agora em verificar o comportamento no universo
digital. O número de downloads da companhia alcançou 4,2 milhões em
abril, ante 6,4 milhões do Magalu. Em março de 2019, era menos da
metade da competidora. “Eles estão no começo de um processo. O mais
importante agora é a direção”, diz. O quinteto da Via Varejo
conseguiu ser ouvido, mas ainda tem muito para provar.
Grupo Casas Bahia ON (BOV:BHIA3)
Gráfico Histórico do Ativo
De Abr 2024 até Mai 2024
Grupo Casas Bahia ON (BOV:BHIA3)
Gráfico Histórico do Ativo
De Mai 2023 até Mai 2024